Não é tabu, é crime: os riscos da romantização na ficção.
Sempre acreditei que a escrita é um território livre que não deveria haver fronteiras para a criação literária. Mas o que acontece quando essas fronteiras colidem com crimes reais? Quando o que se escreve deixa de ser reflexão e passa a ser fetichização?
A mais nova polêmica envolve uma escritora nacional que ainda nem publicou seu livro, mas já causou controvérsia ao revelar a trama: um homem sequestra uma menina de seis anos e a cria como “pai”. Quando a menina entra na puberdade, começa a enxergá-lo de forma romântica, e ele, retratado como um “bom homem”, só aceita esse amor quando ela se torna adulta...
E a pergunta que fica é: como isso pode ser visto como algo bonito? Como alguém consegue narrar essa história sob o véu do romance, ignorando o crime, o trauma, o abuso psicológico? Isso não é ousadia literária é a romantização clara e direta de um sequestro e de um caso gravíssimo de Síndrome de Estocolmo.
A situação se agrava ainda mais ao sabermos que a autora afirma ter se inspirado no livro 3096 Dias, um relato real e doloroso de uma jovem que passou oito anos em cativeiro. Um testemunho de horror, sobrevivência e luta. Como transformar isso em um romance no qual a vítima “se apaixona” pelo sequestrador que a criou como filha? Como isso não pode ser considerado doentio?
Alguns tentam justificar dizendo que Lolita “também era assim”. Mas aí reside um erro grave. Lolita, de Vladimir Nabokov, não é uma história de amor, mas sim uma exposição crua do ponto de vista de um abusador. É uma crítica sutil, mas feroz, sobre como predadores distorcem a realidade para justificar seus crimes. Quem lê Lolita como um romance romântico, leu errado ou preferiu ler errado.
Não se trata de censura. Trata-se de responsabilidade. Se a literatura tem o poder de tocar, também tem o poder de ferir. Autores precisam reconhecer isso. Nem tudo que choca é arte. E nem tudo que se escreve sob o pretexto da liberdade criativa merece ser defendido. Em tempos de redes sociais e autopublicação, muitos autores cedem à tentação de escrever o que “vende”, mesmo que isso custe a integridade da obra. A lógica do engajamento fácil (quanto mais polêmico, melhor) transformou temas sensíveis em iscas de marketing. Mas a literatura não é um terreno neutro. Ela molda visões de mundo, toca feridas reais e reverbera muito além da página. Escrever sobre crimes como se fossem fantasias desejáveis, disfarçados de “tabus literários”, não é provocação artística. É desserviço.
Se a motivação por trás da obra é apenas o choque e o lucro, vale perguntar: a que preço? O que se sacrifica quando se transforma um abuso em romance? O autor que escolhe esse caminho pode até lucrar momentaneamente, mas não com prestígio, e sim com a desconfiança de um público que exige, cada vez mais, consciência, empatia e responsabilidade.
E não é apenas quem escreve que contribui para a propagação dessas narrativas. Quem divulga também carrega parte dessa responsabilidade. Influenciadores, blogs literários, canais de leitura e perfis de recomendação precisam compreender que não basta ler uma sinopse superficial ou apoiar “por amizade”. Ao dar visibilidade a histórias que romantizam crimes ou exploram traumas como fetiche, mesmo sem intenção, contribui-se para a banalização da violência. A visibilidade gera curiosidade, gera vendas, gera leitura e é assim que obras perigosas ganham força, não por mérito literário, mas por polêmica. É fundamental que quem ocupa espaços de influência trate a curadoria com seriedade, porque, sim, divulgar também é tomar partido.
A literatura é poderosa, e com poder, vem responsabilidade. Não se trata de limitar a arte, mas de compreender que ela não existe no vácuo. Quando histórias que deveriam ser denunciadas passam a ser vendidas como romance, quando traumas reais viram pano de fundo para fantasias fetichizadas, algo se rompe entre o autor e o leitor. O pacto da ficção não é o da conivência, e sim o da consciência. Escrever é um ato político, ético e humano. E diante de temas tão delicados, é preciso mais do que coragem para criar: é preciso respeito por quem viveu e sobreviveu aquilo que alguns insistem em transformar em entretenimento e em uma história 'fofinha'.
Nenhum comentário: